12 de julho de 2006

Teoria e prática: uma inepta dicotomia

Teoria e prática: uma inepta dicotomia

Por Bruno Guilherme Cassimiro

A dicotomia ou antagonismo entre teoria e prática não passa de mera falácia. Não há separação ou abismo entre teoria e prática, ambas possuem uma relação inclusiva e vinculada. A práxis não se encontra em um fosso que a separa da teoria, como queria Aristóteles, com a radical oposição entre atividade concreta (prática) e reflexão teórica (teoria), nem tampouco é uma mera ação objetiva que modifica o mundo, aplicando, superando ou concretizando uma “crítica social teórica”, como queria Marx. E a teoria não é um conhecimento de caráter estritamente especulativo, desinteressado, abstrato, em oposição à prática e a qualquer saber técnico ou aplicado.

O filósofo e professor Gilles Deleuze, assim como Michel Foucault, não concebia a prática como aplicação ou oposição da teoria, nem concebia a teoria como pensamento meramente inspirado pela prática. Para Deleuze, “a prática é um conjunto de revezamentos de uma teoria a outra e a teoria é um revezamento de uma prática a outra”, desse modo, não há que se falar em prática ou teoria auto-suficiente, ambas estão sempre relacionadas, vinculadas e entrelaçadas.

Fora da prática social, a teoria não faz nenhuma diferença no mundo do ser, a “desvinculação da teoria com a prática a transforma em mero palavreado” [1]. As leis são conjuntos de abstrações, generalidades, conjuntos de fenômenos fixados em conceitos e categorias gerais, ordenados e classificados, formulados teoricamente. Poder-se-ia dizer, conforme o pensamento marxista ou aristotélico, que as leis, enquanto abstrações teóricas (da teoria do direito ou da teoria política), encontram-se divorciadas da realidade, dos costumes, da prática jurídica, jurisdicional, processual etc.

Talvez o Direito construa sua própria realidade que não se confunde com o mundo real, mas bastante acertado parece o entendimento do emérito Arnoldo Wald, em entrevista concedida à Revista Consultor Jurídico de 9 de Julho de 2006, que diz: “as normas jurídicas devem ter algo a ver com a realidade brasileira. As leis têm de ser criadas considerando a prática” [2].

Do mesmo modo, a prática, tomada como auto-suficiente, é mera técnica, mero know-how. É impossível se conhecer todas as “possíveis técnicas” de todos os “possíveis contextos”, de modo que um operador do direito, por ex., necessita de “condições mínimas e necessárias para que possa desenvolver a habilidade para quando se deparar com o novo, saber avaliá-lo, julgá-lo, apreendê-lo e modificá-lo de acordo com a realidade na qual está inserido” [3]. A habilidade só poderá ser desenvolvida se houver um bom arcabouço teórico, pois, nem sempre a mera técnica será suficiente.

Portanto, torna-se indispensável e fundamental o papel das “teorias” (do Direito, da sociologia, da política etc.) na solução (e desenvolvimento) de situações práticas, bem como o papel da prática para o adequado desenvolvimento da teoria. A teoria e a prática estão de tal forma entrelaçadas, interligadas, que se nos detivermos à prática (conhecimento técnico) sem a teoria (reflexão crítica), não teremos condições de solucionar um caso novo, diferente dos anteriores, não teremos condições de avaliá-lo, julgá-lo, apreendê-lo, e/ou modificá-lo de forma adequada. Assim também, se nos detivermos à teoria fora do contexto prático em que está inserida, qualquer conceituação, criação ou abstração não passará de mero psitacismo, mero palavreado vazio. Ainda segundo o pensamento do ilustre Deleuze, “nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é preciso a prática para atravessar o muro”.

Em consonância com o pensamento de Deleuze e Foucault (com certa influência de Nietzsche) e conforme certa inspiração em Bobbio (ilustre “teórico” e “prático”), destaco a importância da utilização de teorias-modelo (teoria do direito, teoria política, sociológica, psicológica, lingüística etc), precisamos nos servir dessas teorias-modelo, precisamos reler os clássicos, reinterpretar os teóricos. Precisamos das “muitas teorias” para construir um embasamento crítico, precisamos construir “conceitos” gerais e abstratos e, através desse embasamento e dessa conceituação, tentar “compreender” a realidade (compreensão limitada pelo nosso aparato cognoscitivo, que é uma das fronteiras entre o real e o imaginário), pois “quanto maior for o grau de concretude do pensamento, menor será a compreensão da realidade” [4].

A partir do momento em que conseguimos “compreender” a realidade (ainda que parcialmente), após o revezamento entre as muitas teorias, após a criação ou formulação de “conceitos”, após o exercício da “arte do pensar”, seremos capazes de solucionar situações práticas. Deve haver, portanto, criação de conceitos (ideais) e "produção de acontecimentos" (no mundo real), em um perpétuo jogo entre o abstrato (teórico) e o concreto (prático).

Por fim, é indispensável destacar o “ensinamento” de Nietzsche, segundo o qual “É preciso aprender a pensar. (...) A arte de pensar deve ser aprendida como uma dança. É preciso saber dançar com os pés, com as idéias (conceitos), com as palavras, com a pena (caneta)”[5].

[1] SERAFIM, Maurício C. A Falácia da dicotomia teoria-prática. In: Revista Espaço Acadêmico, Ano I, n. 7, Dezembro de 2001.
http://www.espacoacademico.com.br/007/07mauricio.htm .

[2] Revista Consultor Jurídico. Entrevista: Arnoldo Wald.
http://conjur.estadao.com.br/static/text/46158,1 .

[3] SERAFIM, Maurício C. A Falácia da dicotomia teoria-prática. In: Revista Espaço Acadêmico, Ano I, n. 7, Dezembro de 2001.
http://www.espacoacademico.com.br/007/07mauricio.htm .

[4] Idem.

[5] NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos: ou como filosofar a marteladas. Trad. Carlos Antônio Braga. São Paulo: Escala, pp. 62-63.

Um comentário:

Higgo disse...

"é preciso aprender a pensar".

Quem nasceu primeiro? a teoria ou a prática? Alguém escreveu linhas de conceitos baseados numa observação prévia ou esse alguém conseguiu antes transcrever em linhas solitárias o que veio se tornar uma realidade concreta?

Isso comprova mais ainda a interligação que você afirma no seu texto.

E mais: o ato de pensar não só nos dá conceitos, mas também novas formas de praticá-los.

Parabéns, hein??
Orgulho de tu.
Me ensina a ser assim. Me ensina a pensar. (sacasse a prática e teoria intrínsecas a esse pedido?)
Abração!!!! hahahaha