20 de junho de 2006

Fé, Ciência e o Judiciário: psicografia como prova judicial

Em um Estado laico, aceitar a psicografia como prova judicial implica em uma contradição dentro do próprio sistema jurídico. Se aceitarmos a psicografia como prova no processo judicial, em breve também teremos que aceitar o exorcismo ou possessão demoníaca como procedimentos ou fatos legítimos e aceitáveis em um processo judicial, por exemplo.

Observando a questão da aceitação da psicografia como prova no Tribunal de Júri, recordo do filme "O exorcismo de Emily Rose" . O filme é de terror ou suspense, mas o caso de exorcismo e o julgamento descritos no filme são verossímeis, inspirados em fatos reais, considero-o um filme de Tribunal, apesar de toda a alegoria que fazem. O filme conta a história de um padre acusado de homicídio culposo que, por acreditar que uma garota estava possuída pelo demônio, recomenda a rejeição de auxílio médico e passa a praticar uma série de rituais de exorcismo, que culminam com a morte da garota. De fato, muitos acreditavam que a garota estava possuída, inclusive a Igreja católica reconheceu a possessão demoníaca da garota. Entretanto, a promotoria alegava que o padre havia sido negligente, que a menina não havia sido possuída pelo demônio e que ela sofria de epilepsia, alucinações, esquizofrenia, psicose etc.

Ambos os casos suscitam a contraposição entre Fé e Ciência, mais precisamente o espiritismo versus as leis da física, e de outro lado o catolicismo versus a medicina. E no meio dos litígios encontra-se o Judiciário, o tribunal de júri. E no tribunal do júri encontramos cidadãos de notória idoneidade, representantes da sociedade, não são necessariamente médicos, ou espíritas, católicos ou operadores do direito. Mas quando o cidadão comum participa do tribunal do júri, ele passa a agir como um auxiliar da justiça, exercendo um papel de "operador do direito", ele julga, decide. No entanto, para o Tribunal do Júri não importa se a verdade está na fé ou na ciência, importa a inclinação do júri (cidadão comum, representante da sociedade) para um lado, ou para o outro.

Particularmente, como cidadão comum acho muito difícil decidir entre fé e ciência, mas, como operador do direito, concebo como inaceitável a legitimação de psicografias, exorcismos ou possessões demoníacas no processo judicial. Não apenas pelo simples fato da gritante contradição e inconstitucionalidade perante o Estado laico, mas pelo simples fato de haver valoração moral ou religiosa, valoração de fé. Como poderemos aceitar algo que se coloca como fé, algo que não podemos dizer se é verdadeiro ou falso? Deveremos aceitar a prova através do princípio do in dubio pro reo? Por exemplo: não sabemos se a carta psicografada é autêntica ou não, ela é permitida no Brasil porque é uma liberdade de crença constitucional, a psicografia é baseada na fé, mas o Estado não pode garantir a autenticidade, então, in dubio reus est absolvendus, na dúvida, inocentamos o réu. Outro exemplo: no caso do exorcismo, não sabemos se houve ou não possessão demoníaca, já que a possessão é baseada na fé, então, o padre não pode ser condenado por homicídio devido ao in dubio reus est absolvendus.

A fé está atrelada a juízos de bem e de mal, juízos morais, juízos religiosos. Considero inaceitável e inconstitucional a utilização de princípios religiosos e demais valorações de fé no processo judicial, salvo quando a própria constituição determinar a aceitação. Portanto, como operadores do direito, filósofos ou cientistas, devemos nos colocar muito além do bem e do mal, muito acima de juízos morais ou religiosos. A aceitação jurídica de preceitos de determinada doutrina religiosa pode implicar na negação de preceitos de uma outra doutrina religiosa, o que é incoerente com o Estado Laico.

Psicografias ou possessões demoníacas são fatos morais, religiosos, são fatos de fé. E, além da inconstitucionalidade, o juízo religioso deve ser excluído do processo judicial por acreditar em realidades que não existem. Acertado parece o entendimento do filósofo Friedrich Nietzsche, em seu Crepúsculo dos Ídolos, que diz: "o juízo religioso pertence a um grau de ignorância em que a 'noção da realidade', a distinção entre o 'real' e o 'imaginário' não existem ainda, de modo que em semelhante grau a palavra 'verdade' só serve para designar coisas que hoje chamamos 'imaginação'".

Mas não questiono a liberdade de crença religiosa, a qual respeito demasiadamente*.

6 de junho de 2006

Dancem, Macacos, Dancem!

*Vídeo extraído do site YouTube

*Segue abaixo a transcrição da narração:

Sobre Quem Somos Nós: Dancem, Macacos, Dancem!

Há bilhões de galáxias no universo observável e cada uma delas contém centenas de bilhões de estrelas, em uma dessas galáxias orbitando uma dessas estrelas há um pequeno planeta azul e este planeta é governado por um bando de macacos. Mas esses macacos não pensam em si mesmos como macacos. Eles nem sequer pensam em si mesmos como animais, de fato, eles adoram listar todas as coisas que eles pensam separá-los dos animais: polegares opositores, autoconsciência, eles usam palavras como Homo Erectus e Australopithecus. Você diz to-ma-te, eu digo to-ma-ti. Eles são animais, certo?

Eles são macacos. Macacos com tecnologia de fibra ótica digital de alta velocidade mas ainda assim macacos. Quero dizer, eles são espertos, você tem que conceder isso. As pirâmides, os arranha-céus, os jatos, a Grande Muralha da China, isso tudo é muito impressionante, para um bando de macacos.

Macacos cujos cérebros evoluíram para um tamanho tão ingovernável que agora é bastante impossível para eles ficarem felizes por muito tempo, na verdade, eles são os únicos animais que pensam que deveriam ser felizes, todos os outros animais podem simplesmente ser.

Mas não é tão simples para os macacos, pois os macacos são amaldiçoados com a consciência e assim os macacos têm medo, os macacos se preocupam, os macacos se preocupam com tudo, mas acima de tudo com o que todos os outros macacos pensam. Porque os macacos querem desesperadamente se encaixar com os outros macacos. O que é bem difícil, porque a maior parte dos macacos se odeia.

Isto é o que realmente os separa dos outros animais. Estes macacos odeiam. Eles odeiam macacos que são diferentes, macacos de lugares diferentes, macacos de cores diferentes.

Sabe, os macacos se sentem sozinhos, todos os 6 bilhões deles.

Alguns dos macacos pagam outros macacos para ouvir seus problemas. Os macacos querem respostas, os macacos sabem que vão morrer, então os macacos fazem deuses e os adoram. Então os macacos começam a discutir quem fez o deus melhor, e os macacos ficam irritados e é quando geralmente os macacos decidem que é uma boa hora de começar a matar uns aos outros.

Então os macacos fazem guerra. Os macacos fazem bombas de hidrogênio, os macacos têm o planeta inteiro preparado para explodir, os macacos não sabem o que fazer.

Alguns dos macacos tocam para uma multidão vendida de outros macacos. Os macacos fazem troféus e então eles os dão para si mesmos como se isto significasse algo.

Alguns dos macacos acham que sabem de tudo, alguns dos macacos lêem Nietzsche, os macacos discutem Nietzsche sem dar qualquer consideração ao fato de que Nietzsche era só outro macaco.

Os macacos fazem planos, os macacos se apaixonam, os macacos fazem sexo e então fazem mais macacos. Os macacos fazem música, e então os macacos dançam. Dancem, macacos, dancem! Os macacos fazem muito barulho, os macacos têm tanto potencial. Se eles pelo menos se dedicassem...

Os macacos raspam o pêlo de seus corpos numa ostensiva negação de sua verdadeira natureza de macaco. Os macacos constroem gigantes colméias de macacos que eles chamam de "cidades". Os macacos desenham um monte de linhas imaginárias na terra. Os macacos estão ficando sem petróleo, que alimenta sua precária civilização. Os macacos estão poluindo e saqueando seu planeta como se não houvesse amanhã. Os macacos gostam de fingir que está tudo bem.

Alguns dos macacos realmente acreditam que o universo inteiro foi feito para seu benefício, como você pode ver, esses são uns macacos atrapalhados.

Estes macacos são ao mesmo tempo as mais feias e mais belas criaturas do planeta, e os macacos não querem ser macacos, eles querem ser outra coisa, mas não são.

Veja o Vídeo no Site do YouTube

1 de junho de 2006

"Habeas carrum": animus jocandi ou ignorantia juris?

IustitiaParece mentira (e vale ressaltar que ainda tenho minhas dúvidas quanto à veracidade dessa aberração jurídica), mas um estudante de Direito resolveu "peticionar" um "habeas carrum" lá em Florianópolis. Aproveitando a nova onda de HC para lá, HC para cá, um tal de Rodrigo Cunha resolveu "requerer respeitosamente" um "habeas carrum". Chega a ser hilário. "Venho humildemente requerer a liberação do veículo". (...) "Estando o paciente [veículo] sofrendo coação ilegal em sua liberdade de ir e vir, requer o impetrante a V. Exa. se digne de mandar que o mesmo lhe seja imediatamente apresentado, e de conceder a ordem de HABEAS CARRUM, ou qualquer outro que possibilite a liberação do veículo".

Apesar de hilária, a petição foi bem redigida, e até chega a ser bem fundamentada, mas a tentativa de requerer um "habeas carrum" suscita duas possibilidades: animus jocandi ou ignorantia juris.

Como já era de se esperar, o Juiz Newton Varella Júnior indeferiu o pedido. O juiz demonstrou-se incomodado com a situação, alegou que prefere acreditar que houve falta de conhecimento jurídico do requerente, e não deboche. Além disso, o magistrado ainda fez questão de ressaltar o excesso de trabalho na seção judiciária, in verbis: "quero crer que pelo relato feito na presente e pela falta de conhecimento jurídico demonstrado, que tal situação não se trata de deboche, já que num primeiro olhar soa como gozação e menosprezo ao trabalho do Poder Judiciário, que só nesta seção possui cerca de cinco mil processos para serem tutelados."

A notícia foi publicada pelo portal jurídico Espaço Vital, onde encontramos também a "petição inicial do habeas carrum" e a "decisão do juiz Newton Varella Júnior". O conteúdo é duvidoso, mas não deixa de ser hilário. Pois é, fica a dúvida no ar: a) seria a notícia inverídica?; b) seria o habeas carrum apenas um gracejo do estudante?; c) Ou seria o habeas carrum fruto de um desconhecimento jurídico?.