5 de agosto de 2007

Da culpa e de seus desdobramentos psicológicos

Considerações Iniciais: da Culpa

Prima facie, pode-se dizer que culpa é a responsabilidade atrelada à idéia de punição ou sanção, atribuída a alguém por dano, mal, ou prejuízo material ou moral causado a si mesmo ou a outrem, dano este que pode resultar de ação ou omissão, por ignorância ou descuido. Noutros termos, tratar-se-ia de responsabilidade por falta contra a lei, por um delito, ou pela simples prática de um ato censurável, repreensível ética ou moralmente.

Juridicamente, diz-se que a culpa, stricto sensu, decorre da violação ou inobservância de uma regra, proveniente de imperícia, negligência ou imprudência, e que produz efeito lesivo ao direito de outrem, em razão do descaso ou falta de cuidado objetivo. Neste caso, o agente, por ação ou omissão, não possui a intenção de produzir resultado danoso ou lesivo, mas é responsável pelo prejuízo causado. Também são passíveis de reprovabilidade, e, portanto, culpáveis, as condutas ilícitas tipificadas na legislação penal e dirigidas à produção de resultados lesivos ao direito de outrem. Da falta contra dever jurídico, em havendo culpa, decorrem sanções ou punições heterônomas e coercitivas que produzem efeitos no âmbito intersubjetivo, independente da vontade do agente, que responderá pela lesão provocada na medida de sua culpa.

No sentido religioso, a culpa está, via de regra, atrelada ao termo pecado, que representa de modo geral qualquer desobediência à vontade divina. Dessa forma, a culpa é a responsabilidade pela transgressão de norma religiosa ou pelo pecado cometido, que torna o agente agressor da divindade. Da transgressão cometida importam sanções ou repreensões divinas, as quais se dão tão-somente no âmbito interno-subjetivo do agente e que propõem a busca da expiação do mal causado à divindade por meio da autopunição.

O Sentimento de Culpa e o Superego

Não obstante as inúmeras acepções que possa assumir a palavra culpa, acreditamos que a acepção mais importante é aquela que se dá no plano subjetivo, a qual representa, sobremodo, um sentimento de auto-rejeição, de desajuste social, um sentir-se responsável por ato ou fato doloroso, danoso. Tal sentimento de culpa implica numa reflexão dolorosa pelo descumprimento de uma norma moral, religiosa, jurídica, afetiva, ética etc.

Estreitamente ligado à culpa em sentido subjetivo, encontra-se o remorso, caracterizado pelo abatimento da consciência que percebe ter cometido uma falta, um erro. Como a culpa, o remorso é um sentimento de auto-condenação pelo cometimento de uma infração aos preceitos e valores sociais e individuais.

Sobremodo, a culpa é um sentimento que provoca o desgosto de si mesmo e com isso o desequilíbrio emocional e a autopunição. Este sentimento decorre da frustração causada pela disparidade entre aquilo que o indivíduo não foi (ser) e a imagem daquilo que ele acredita que deveria ser (dever ser). Tal disparidade resulta de um conflito entre os impulsos instintivos e os valores morais internalizados e perseguidos pelo superego - estrutura censora da personalidade. Quanto mais as atitudes do indivíduo corresponderem à imagem criada pelo superego, menor será a frustração e menor será o sentimento de culpa. Entretanto, quanto mais as práticas do indivíduo obedecerem aos impulsos instintivos e se afastarem dos valores apregoados pelo superego, maior será a frustração e, conseqüentemente, maior será o sentimento de culpa.

Como visto, o superego - responsável pela internalização das normas referentes ao que é moralmente proibido e ao que é valorizado - tende a impulsionar o indivíduo na obtenção dos valores culturais, sociais e morais. A transgressão de qualquer desses valores acarreta a auto-crítica do indivíduo através dos sentimentos acusatórios provenientes do superego, tais como a culpa e o remorso. Sem as restrições do superego, as pessoas agem ao sabor dos próprios impulsos, instintos e desejos, sem censura de valores internos, logo, propensas à delinqüência, sendo contidas apenas por restrições punitivas do âmbito externo.

Culpa, Medo de Punição e Tentativa de Fuga

Dessa forma, a auto-condenação, autopunição e o tormento interno, oriundos dos sentimentos de culpa ou remorso, são motivados pelo medo da punição imposto pela estrutura superegóica. O indivíduo que sente remorso ou culpa não está necessariamente arrependido de seus atos. Motivado pelo medo, o individuo castiga a si mesmo por acreditar, ainda que inconscientemente, que a autopunição redimirá seu erro. Não se trata, pois, de arrependimento, mas, sim, de uma tentativa de fugir de uma punição externa oriunda do meio social, ou de uma entidade divina, superior. Quanto mais desenvolvido for o superego, maior será o temor à punição externa e maior será a frustração e o sentimento de culpa pela transgressão praticada.

Assim, um indivíduo que tenha praticado um delito ou qualquer outro ato moral ou eticamente reprovável, e que possua uma estrutura superegóica normalmente constituída, possivelmente desencadeará, após a realização da transgressão, sintomas de abatimento da consciência, desequilíbrio emocional, sentimento de auto-rejeição ou desgosto de si, característicos do sentimento de culpa. Este indivíduo, motivado pelo medo de punição imposto pelo superego, passa a castigar a si mesmo, de modo a tentar, inconscientemente, expiar a culpa, não por arrependimento, mas por medo de sofrer as reprimendas da Justiça, da coletividade ou de Deus.

No âmbito jurídico, a culpa proveniente de um juízo de reprovabilidade da conduta pelo Estado-juiz, traz à tona a necessidade de sanar o mal injusto provocado pela ação ou omissão do indivíduo com uma punição na medida de sua culpa. No entanto, esta culpa ou responsabilização pelo ato praticado não estará necessariamente acompanhada de um sentimento de culpa do agente, que poderá não sofrer abatimento da consciência ou tormento interno pelo injusto praticado.

Trata-se, nesse caso, de um indivíduo que não possui o seu superego desenvolvido: o psicopata. Diz-se psicopata, por exemplo, o indivíduo que não traz incutido em seu superego o juízo de desvalor da ação matar alguém, este indivíduo não sofre restrições valorativas internas que conflitem com seus impulsos instintivos, de modo que, após retirar a vida de alguém, não sente qualquer auto-crítica, frustração ou desgosto de si, não se imbuindo de qualquer sentimento de culpa.

No âmbito religioso, o sentimento de culpa pelo pecado cometido ou pela transgressão às normas divinas, provoca a autopunição como busca da expiação do mal causado à divindade, de modo a evitar as punições e sanções divinas. Tem-se, dessa forma, uma tentativa de fuga da punição divina, conscientemente dirigida pelo “pecador”.

Considerações Finais

Por fim, destaque-se que o superego e o sentimento de culpa são elementos necessários à convivência pacífica em sociedade, mas quando exarcebados tendem a paralisar ou neurotizar o indivíduo. As punições superegóicas podem ocorrer mesmo que não sejam realizados atos na prática, basta que ocorra o desejo, sem manifestação exterior. Diante de um superego muito rigoroso não se é possível sequer desejar, posto que, ao perceber os desejos que condena, o superego ativará sentimentos de culpa ao indivíduo como se a transgressão houvesse realmente ocorrido.

Um bom exemplo de distúrbio provocado por superego rigoroso e por sentimentos de culpa exarcebados situa-se no campo da sexualidade, onde a internalização de valores de uma educação repressora e de valores religiosos também repressores geram problemas ao indivíduo, que forma preconceitos e mitos sobre sexo. Nesses indivíduos, o simples desejar ou imaginar uma atuação sexual faz com que o superego ative os sentimentos de culpa e eles sintam-se imorais.

04.02.2007
por Bruno Guilherme Cassimiro